sexta-feira, 27 de agosto de 2010

No mês dos pais...

Especialmente ao meu pai, pelo seu aniversário hoje...

Uma pequena homenagem...


"(...)

- Vou contar-lhe uma história.
E falou de um incerto pai que não sabia dar tamanho amor pelo seu filho. Certa vez registrou-se um incêndio no casebre em que viviam. O homem pegou no menino ao colo e se afastou da tragédia, caminhando pela noite fora. Deve ter superado o limite deste mundo pois quando, por fim, decidiu colocá-lo no chão, reparou que já não havia terra. Restava um vazio entre vazios, rompidas nuvens entre desmaiados céus. Para si mesmo, o homem concluiu:
- Agora, só no meu colo meu filho encontrará chão.
Nunca esse menino se apercebeu que o imenso território onde depois viveu, cresceu e fez filhos não era senão o regaço do seu velho progenitor. Muitos anos depois, quando abria a sepultura do pai, chamou o seu filho e lhe disse:
- Vê a terra, filho? Parece areia, pedras e torrões. Mas são braços e abraços.
(...)"

Mia Couto, Antes de Nascer o Mundo (pag. 50 e 51)

terça-feira, 24 de agosto de 2010

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Sobre silêncios...

Sou uma pessoa muito reservada... ao mesmo tempo, sou muito falante quando me sinto à vontade. Mas gosto de momentos de silêncio.

O silêncio que eu mesma sou capaz de fazer, estando junto com alguém ou com várias pessoas já me incomodou muito. Estar em silêncio na presença do outro me deixava a sensação de que eu não tinha (ou não demonstrava ter) afinidade, simpatia, intimidade, amizade e sei lá mais o quê!

Hoje já entendo melhor o silêncio...

Achei interessante o fato de que algumas leituras recentes que fiz trouxeram a questão de maneira tão forte... Por isso resolvi compartilhar!



De Mia Couto, Antes de Nascer o Mundo:

"A família, a escola, os outros, todos elegem em nós uma centelha promissora, um território em que podemos brilhar. Uns nasceram para cantar, outros para dançar, outros nasceram simplesmente para serem outros.Eu nasci para estar calado. Minha única vocação é o silêncio. Foi meu pai que me explicou: tenho inclinação para não falar, um talento para apurar silêncios. Escrevo bem, silêncios, no plural. Sim, porque não há um único silêncio. E todo o silêncio é música em estado de gravidez.

Quando me viam, parado e recatado, no meu invisível recanto, eu não estava pasmado. Estava desempenhado, de alma e corpo ocupados: tecia os delicados fios com que se fabrica a quietude. Eu era um afinador de silêncios.

- Venha, meu filho, venha ajudar-me a ficar calado.

E era assim todas as noites (...). Depois, ele inspirava fundo e dizia:

- Este é o silêncio mais bonito que escutei até hoje. Lhe agradeço, Mwanito.

Ficar devidamente calado requer anos de prática. Em mim era dom natural, herança de algum antepassado." (pgs. 13 e 14)


De Isabel Allende, A Soma dos Dias:

"Janeiro chega depois de alguns meses sem escrever, nos quais vivi voltada para fora, na balbúrdia do mundo, viajando, promovendo livros, dando conferências, rodeada de gente, falando demais. Barulho e mais barulho. Mais que de qualquer outra coisa, tenho medo de ter me tornado surda, não poder ouvir o silêncio. Sem silêncio, estou em apuros." (pag. 12)

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Mia Couto: andei lendo...

Eu 'conheci' o Mia Couto através de uma blogueira-amiga-virtual, a Fabrícia, do Sopa Vermelha...

Vira e mexe ela posta uma imagem linda seguida de uma frase do Mia. Tudo com uma sensibilidade de emocionar!

Assim, um dia, me peguei em uma livraria sorrindo, de orelha a orelha, ao me deparar com um livro dele! Nunca tinha procurado, mas quando o encontrei, sem querer, senti uma alegria como se tivesse encontrado algo que procurava com fervor! Mesmo assim não comprei o livro na hora... Eu sou assim... Insegura, indecisa... e quase nunca faço compras por impulso! Mas o marido lindo observou a cena, perguntou, quis saber e dois dias depois me presenteou com o livro "Antes de Nascer o Mundo".

O livro é simplesmente delicioso, uma história inusitada, entre sonho e realidade, que causa estranheza e traz consigo mensagens e reflexões profundas, atuais, mas que não são óbvias. Eu realmente adorei o livro! Algumas vezes quis dar colo ou oferecer o meu ombro aos personagens, entendendo-os apesar de vivermos em realidades tão distintas...

Deixo aqui algumas citações, bem poucas, perto de tantas que me tocaram... (os negritos são meus! rsrsrs...)


"Eu nasci para estar calado. Minha única vocação é o silêncio. Foi meu pai que me explicou: tenho inclinação para não falar, um talento para apurar silêncios. Escrevo bem, silêncios, no plural. Sim, porque não há um único silêncio. E todo o silêncio é música em estado de gravidez.
(...)
- Venha, meu filho, venha ajudar-me a ficar calado.
E era assim todas as noites (...). Depois, ele inspirava fundo e dizia:
- Este é o silêncio mais bonito que escutei até hoje. Lhe agradeço, Mwanito.
Ficar devidamente calado requer anos de prática. Em mim era dom natural, herança de algum antepassado." (p. 13 e 14)

"Viver? Ora, viver é cumprir sonhos, esperar notícias." (p. 22)

"Velhice não é idade: é um cansaço." (p.22)

"Sentado ao volante da desfalecida máquina, eu podia ter inventado viagens infinitas, vivenciado distâncias e cercos. Como faria outra qualquer criança, poderia ter dado a volta ao planeta, até que o universo inteiro me obedecesse. Mas isso nunca sucedeu: o meu sonho não aprendera a viajar. Quem viveu pregado a um só chão não sabe sonhar com outros lugares" (p. 24)


"- Escrever no baralho?
- Há outro papel por aqui?
- Mas com o baralho que jogamos?
- Exactamente por isso: o pai nunca irá desconfiar. Já fazemos batota no jogo. Agora, faremos batota na vida.
Foi dessa maneira que estreei o meu primeiro diário. Foi também assim que ases e valetes, damas e reis, duques e manilhas passaram a partilhar os meus segredos. Os rabiscos minúsculos encheram copas, paus, ouros e espadas. Nesses cinquenta e dois quadradinhos verti uma infância de queixumes, esperanças e confissões. No jogo com Ntunzi, sempre perdi. No jogo com a escrita, perdi-me sempre." (p. 42 e 43)

- Estou cansado, pai.
- Cansado de quê? Se você não faz nada, de manhâ à noite?
-Não viver é o que mais cansa. (p.65)


"Não chegamos realmente a viver durante a maior parte da nossa vida. Desperdiçamo-nos numa espraiada letargia a que, para nosso próprio engano e consolo, chamamos existência. No resto, vamos vagalumeando, acesos por breves intermitências." (p.115)

"Vês como fico pequena quando escrevo para ti? É por isso que eu nunca poderia ser poeta. O poeta se engrandece perante a ausência, como se a ausência fosse o seu altar, e ele ficasse maior que a palavra. No meu caso, não, a ausência me deixa submersa, sem acesso a mim.
Este é o meu conflito: quando estás, não existo, ignorada. Quando não estas, me desconheço, ignorante. Eu só sou na tua presença. E só me tenho na tua ausência. Agora, eu se. Sou apenas um nome. Um nome que não se acende senão na tua boca." (p.132)

"Perseguida pelo medo da velhice, deixei envelhecer a nossa relação. Ocupada em me fazer bela, deixei escapar a verdadeira beleza, que apenas mora no desnudar do olhar. O lençol esfriou, a cama se desaventurou. Esta é a diferença: a mulher que encontraste aí, em África, fica bela apenas para ti. Eu ficava bela para mim, que é um outro modo de dizer: para ninguém.
É isso que essas negras têm que nunca podemos ter: elas são sempre o corpo inteiro. Elas moram em cada porção do corpo. Todo o seu corpo é mulher, todo o seu tempo é feminino. E nó, brancas, vivemos numa estranha transumância: ora somos alma, ora somos corpo. Acedemos ao pecado para fugir do inferno. Aspiramos à asa do desejo para, depois, tombarmos sob o peso da culpa." (p. 135)

"-És parecida com a Terra. Essa é a tua beleza.
Era assim que dizias. E quando nos beijávamos e eu perdia respiração e, entre suspiros, perguntava: em que dia naceste? E me respondias, voz trémula: estou nascendo agora. E a tua mão ascendia por entre o vão das minhas pernas e eu voltava a perguntar: onde naceste? E tu, quase sem voz, respondias: estou nascendo em ti, meu amor. Era assim que dizias. Marcelo, tu eras um poeta. Eu era a tua poesia. E quando me escrevias, era tão belo o que me contavas que me despia para ler as tuas cartas. Só nua eu te podia ler. Porque te recebia não em meus olhos, mas como todos o meu corpo, linha por linha, poro por poro."(p.136)

"Ao contemplar a queimada na savana, me veio uma saudade dessa troca de fogo, o espelho do deslumbramento em Marcelo. Deslumbrar, como manda a palavra, deveria ser cegar, retirar a luz. E afinal era agora um ofuscamento que eu pretendia. Essa alucinação que uma vez sentira, eu sabia, era viciante como morfina. O amor é uma morfina. Podia ser comerciado em embalagens sob o nome: Amorfina." (p. 140)

"Era certo que a invasão da sensualidade negra era um sinal que os padrões de beleza se tornaram menos preconceituosos. A nudez da mulher negra, contudo, me conduzia ao meu próprio corpo. Pensando no modo como via o meu corpo concluí: eu não sabia estar nua. E dei conta: o que me cobria não era tanto o vestuário mas a vergonha. Era assim desde Eva, desde o pecado. Para mim, África não era um continente. Era o medo da minha própria sensualidade. Uma coisa parecia certa: se queria reconquistar Marcelo, precisava de deixar África emergir dentro de mim. Precisava de fazer nascer, em mim, a minha nudez africana." (p. 177)
"Aproximado disse que as ruas do bairro eram pequenas, bastante passeáveis. Eu que fosse por elas com meu pai, a ver se ele ganhava distracção. Hoje sei: nenhuma rua é pequena. Todas escondem infinitas histórias, todas ocultam incontáveis segredos." (p. 231)

"É por isso que te escrevo. Não há morte, nesta carta. Mas há uma despedida que é umpequeno modo de morrer. Lembras-te como dizia Zacaria? 'Tive as minhas mortes, felizmente, todas elas passageiras.' A minha única morte foi a de Marcelo. Essa, sim, foi o primeiro desfecho definitivo. Não sei se Marcelo foi o amor da minha vida. Mas foi uma vida inteira de amor. Quem ama, ama para sempre. Nunca faças nada para sempre. Excepto amar." (p. 241-242)